ARTIGO

O importante é quem morreu, ou quem matou?




      A morte do cinegrafista Santiago após ser atingido por um rojão durante um protesto no Rio está sendo utilizada pelo governo e pela imprensa como mote para justificar a dura repressão da PM a novos protestos contra a Copa. Santiago, sem querer, virou estandarte do governo e mídia, que “esqueceram” as demais, que já somam mais de 1 mil relacionadas direta ou indiretamente aos protestos iniciados em 2013, quase  totalidade protagonizada pelos grupamentos militares.

      Após ser comprovado que o rojão foi solto por manifestantes, o governo e a grande imprensa realizam intensa campanha de marketing, e a policia fez da caçada aos jovens que lançaram o rojão a sua principal prioridade, com ampla cobertura televisiva. Assim, tentam confundir a população e isolar os manifestantes. Por que não falam dos outros brasileiros assassinados? O governo e a mídia estão assumindo que alguns valem mais que outros? Ou dizendo claramente que o que importa não é quem morreu, mas quem matou? Sim, porque ocorreram diversas mortes, algumas poucas causadas por pessoas alheias aos protestos e a grande maioria por quem estava a serviço do Estado. E nenhuma suscitou manchetes diárias nem caçada aos assassinos. Por que será? O jornal Folha de S. Paulo, em levantamento divulgado semana passada sobre agressões durante protestos, revelou que apenas casos de agressão a policiais foram investigados e resultaram em inquéritos. A quase totalidade das demais agressões e mortes não sofreram investigação. 
     A grande mídia, contraditoriamente, parou de falar nos inúmeros repórteres agredidos pela polícia (segundo uma pesquisa feita desde junho do ano passado pela Abraji - Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo -, 75,5% das agressões contra jornalistas partiram de PMs). Parou-se de falar no rapaz baleado pela polícia e no espancamento de uma manifestante, por oito policiais, que depois foi atropelada propositadamente por uma moto da Rocam – Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas. Deixou-se de falar do manifestante atropelado por um carro da PM, que seguiu sem dar socorro, e da gari morta por gás lacrimogênio quando estava trabalhando. E também do repórter que perdeu a visão de um olho, por bala de borracha, e de tantos outros assassinados e agredidos por grupamentos que vão atuar sem a tarja de identificação obrigatória (embora isso seja denunciado diariamente). Querem criminalizar quem usar máscara, mas não mandam os policiais se identificarem, confirmando a velha ordem “faça o que eu mando, mas não faça o que eu faço”. A espetacularização dessa única morte prova que a pessoa que morreu é menos importante do que quem causou sua morte. 
     Segundo a revista ISTO É (nº 2308), 563 pessoas foram mortas pela PM em São Paulo, 415 no Rio e 344 na Bahia. A criação e disponibilização da Força Nacional não é coincidência. Mas seu uso para conter protestos urbanos contraria a nossa Constituição, tanto quanto o militarismo das nossas polícias. O chamado desse grupamento e a ressuscitação de leis de exceção não encontram amparo nesse momento de decantada democracia, que alguns pensam estar vivendo. 
     Massificando a reprodução de uma tragédia isolada, porque lhe convém,  repetindo cansativamente cenas de depredação, classificando os jovens como terroristas e criminalizando os movimentos sociais, o governo busca desviar o foco sobre os motivos de revolta popular que explodiram em junho passado, sem mexer uma vírgula nesses motivos. Ao contrário, recrudesce a violência institucional para contê-los e, junto com o Legislativo, ressuscitam normas de exceção para ampará-la. A eles também se une o Judiciário, para legitimar ataques à Constituição Federal. Um exemplo é a subtração do nosso direito a transitar em solo nacional, próximo de estádios e festas da Copa, sem que o MP se mova ante a essa absurda queda da autonomia brasileira frente à Fifa.

     A institucionalidade não conseguiu responder aos anseios das ruas e, por óbvio, estes se potencializaram e estimularam atos mais fortes em reação a essa ausência de resposta concreta do governo federal e demais poderes instituídos, que continuaram avançando no caminho inverso do desejo popular e reprimindo cada vez mais os protestos. Inclusive agora, com essa tragédia, contando com o escancarado apoio da grande mídia e até de setores que ainda assistiam absortos a erupção da insatisfação popular. Esses setores se mantinham na linha de observação, ora aplaudindo, ora tremendo nas pernas quando ouviam “fora partidos”, “abaixo a corrupção” ou quando ouviam “fora Dilma”, ou viam bancos depredados e ônibus incendiados. Não queriam ser contra, mas hesitavam em apoiar, por medo que a subversão da ordem pusesse em risco seus castelinhos particulares e sua segurança Thomas Hobbeanas. A tragédia isolada deu o mote ao choque de ordem. Era tudo que eles queriam para revelar confortavelmente sua raiva dos manifestantes mais aguerridos, expondo seus medos...
      Uma pergunta que não quer calar: por que a grande imprensa defende os manifestantes venezuelanos e ucranianos (estes últimos foram filmados produzindo coquetéis molotov em via  pública e a mídia os chama de manifestante) e os daqui são chamados de "vândalos"? Por que fazem verdadeira apologia à revolta nesses países e condenam os brasileiros que vão às ruas cobrar por um país mais justo?
      O fato é que os motivos dos protestos continuam acontecendo sob nossos olhos. Os desvios de dinheiro para a Copa não param de acontecer, aumentam os cortes de gastos com serviços públicos e o orçamento nacional é sangrado com os juros dessa dívida pública mentirosa, isso para dizer o mínimo! Por isso, o povo brasileiro foi para as ruas e irá sempre, mesmo que os poderes instituídos e seus comparsas nacionais e estrangeiros desejem que retornemos às nossas casas e lá fiquemos, passivos e acomodados enquanto eles sim, depredam o patrimônio nacional. O remédio para o Brasil, nesse momento, está nas ruas. Precisamos ir buscá-lo!


Denise Carneiro